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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Crime de ameaça – mal futuro vs mal iminente

 

Fonte: Google Imagens

Atentemos no seguinte caso ficcionado (que bem podia ser real):

No dia 03 de Fevereiro de 2023, cerca das 14H00, na Rua ….., o cidadão … AA dirigiu-se ao agente da Polícia de Segurança Pública … BB, com o intuito de pedir satisfações relativamente ao facto de o seu automóvel ter sido rebocado.

No decurso do diálogo estabelecido, o cidadão …AA dirigiu-se ao referido agente dizendo: «Estão aqui para sacar dinheiro. Parto-te a cara».
(…)

Quid Juris?


    Em abstracto e de forma apriorística, a conduta do cidadão …AA parece subsumir-se no tipo de crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º n.º 1 do Código Penal (CP), eventualmente agravado pelo art.º 155.º n.º 1 al.ª a), por referência aos art.ºs 143.º n.º 1, 145.º n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132.º n.º 2 al.ª l), todos do CP. 

    Estabelece o art.º 153.º n.º 1 do CP que:

Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

    Atendendo à sua classificação dogmática, podemos caracterizar o crime de ameaça como um crime de perigo abstracto-concreto, também conhecido como crime de aptidão ou de perigo hipotético.

    Exige-se, assim, ao intérprete e aplicador do direito, a comprovação, no caso concreto, de uma aptidão da acção (de acordo com a experiência comum) para atingir o bem jurídico protegido pela norma (liberdade de decisão e acção), ainda que, em concreto, ele não seja atingido.

Relativamente a esta aptidão, Taipa de Carvalho [1] afirma que:

O mal ameaçado tem que ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal.

[1] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 343.

    Neste aspecto, a jurisprudência tem-se dividido. Alguns tribunais, na esteira da posição perfilhada por Taipa de Carvalho, têm entendido que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça. [2]

[2] Vide, et al., Acórdão do TRC, de 30/05/2012, proc. 366/10.4GCTND.C1, rel. Jorge Dias, acedido e consultado aqui em 06/02/2022.

    Outros tribunais têm entendido que o mal iminente, embora próximo, é ainda um mal futuro. E, sendo assim, tem que se distinguir, no caso concreto, o que é ameaça e o que são atos de execução (tentativa) de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer, nos termos do art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), do CP. [3[4]

[3] Estabelece o art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), do CP, que:
1 - Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
2 - São actos de execução:
(…)
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.
[2] Vide, et. al., Acórdão do TRE, de 04/112010, proc. 13/07.1GLBJA.E1, rel. Carlos Coelho, acedido e consultado aqui em 06/02/2023.

    No caso prático que enunciámos, a expressão “parto-te a cara”, dirigida pelo cidadão … AA ao agente da Polícia de Segurança Pública … BB, pode ser considerada, no caso concreto, um mal presente e iminente.

    Para se desconsiderar o crime de ameaça – e na trilha desta última posição jurisprudencial –, tal expressão teria que ser proferida num contexto de envolvimento físico ou de discussão impetuosa indiciadora de confronto físico.

    Neste caso, a conduta do cidadão … AA subsumir-se-ia no tipo de crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143.º n.º 1, 145.º n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132.º n.º 2 al.ª l), todos do CP, na forma tentada, art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), e 23.º n.º 1, do CP.

    Não existindo qualquer acto de execução [cfr. art.º 22.º n.ºs 1 e 2 al.ª c), do CP], a conduta do cidadão … AA subsumir-se-ia no tipo de crime de ameaça agravada, art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al.ª a), por referência aos art.ºs 143.º n.º 1, 145.º n.ºs 1 al.ª a) e 2, e 132.º n.º 2 al.ª l), todos do CP, se, no caso concreto, o mal anunciado tivesse aptidão para se projectar na liberdade de decisão e de acção futura do agente da Polícia de Segurança Pública … BB.


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3 comentários:

  1. Interessante...

    Obrigado pela partilha.

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  2. Olá Sr Mestre Soares, sobre a assunto penso que demasiadas vezes são desvalorizadas inúmeras situações, em que são objecto de ameaça os Policias como visados.
    ´É tão gritante estas desvalorizações que quase se "aceita" tudo para diminuir a protecção da função em causa, e que socialmente passa a ideia de que é uma acção " tolerada", por não haver severidade na punição, pois deveria ser punida exemplarmente.
    Punições exemplares e na mesma senda criam segurança, quer jurídica, quer socialmente demonstram o caminho a não seguir de modo claro e não seguir.


    Olá Sr. Mestre Soares, sobre a assunto penso eu, que "demasiadas vezes" que são "desvalorizadas" inúmeras situações, em que são objecto de ameaça os Policias como visados.
    São tão gritantes estas "desvalorizações" que quase vale " tudo" diminuindo a protecção da função em causa, o que socialmente passa a ideia de que é uma acção " quase tolerada", por não haver severidade na punição, pois deveria e deve ser punida Exemplarmente.
    Punições exemplares e na mesma senda, criam segurança, quer jurídica pela interpretação jurídica, quer socialmente, demonstram o caminho a não seguir de modo claro.
    Ao "darem punições leves " na minha visão passa a mensagem errada aos demais. (Até infelizmente já arrancam narizes...à dentada ao ponto que isto chega...). mas estamos a falar do "verbalmente apenas...", mas estas devem ser bem idóneas a provocar os efeitos nos policias...
    Socialmente passa uma mensagem de segurança através da sanção ajustada ao comportamento ilícito.
    Os próprios agentes visados das ameaças têm uma espectativa pessoal e jurídica, que serão protegidos pelo desempenho das suas funções, pois se não o são, porque se exporão a ser ameaçados/agredidos a cumprir se o Estado não os protege da forma adequada e casuísticamente ?
    Comparativamente vejam as punições exemplares, em Inglaterra.
    Da acção dos mesmos agentes, resulta a aplicação da lei nos diversos locais nacionais.
    Sem agentes ninguém aplica a lei na ruas...
    Quer queiram quer não, não são estes que a aplicam na rua ??
    No caso em apreço temos uma aplicação coerciva já de regras jurídicas, pois estas serão fruto do comportamento evidenciado o qual depende exclusivamente da vontade do cidadão e não foi originado por nenhum outro facto, pois não ha justificação para tal..
    O seu comportamento de ameaças as policias, já ultrapassou o que é moralmente aceite, pois em nenhuma circunstância na figura de um bom pai de família se pode aceitar que seja ameaçado qualquer pessoa quando mais um agente de autoridade por efectuar o que lhe é devido, e esperado, podendo até nem ter sido ele a promover o reboque, mas a ser quem contactou com o cidadão.
    Ultrapassou-se posteriormente a figura de autoridade do Agente não o respeitando, pelo que, teve que ser o agente a recorrer aos tribunais para repor o lei e a sua respeitabilidade, decorrente das funções que este exerce por ter sido mandatado pelo Estado.
    RR
    (continua )

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  3. O direito à indignação, não abrange policias ...
    Por o cidadão não respeitar o agente e se conter nas suas palavras, passou já para os tribunais, onde caso provado ali se espera que se aplique a lei...pois ja ultrapassou por duas vezes o moralmente aceite e o agente, desrespeitando-o de modo claro e evidente.
    Se não são punidos exemplarmente e a função dos agentes defendida que é o que se espera, como agentes representantes do Estado, porque é que os mesmos continuam a desempenhar as funções...?
    O direito serve para organizar a vida em sociedade e a busca de soluções justas.
    Neste caso a deusa da Justiça deve estar sem venda, pois igual o que é igual diferente o que é diferente, a justiça deve ser aplicada casuisticamente.
    Os romanos tinham uma expressão suun cuique tribuere, a seu o que é seu.... penso que aqui tb se aplicará...

    Não terá o cidadão com esta expressão comprometido seriamente a liberdade de acção daquele agente...como será que o agente se sentirá?
    terá este mudado as rotinas'???
    Sentir-se à este seguro?
    e os familiares deste?
    alterou rotinas?

    Os agentes de autoridade, bem como todos os demais funcionários em exercício de funções publicas, não podem em circunstância nenhuma serem objecto no exercício de funções, de qualquer tipo de qualquer tipo de ameaça, decorrente das funções a estes atribuídas, pelo que por vezes ocorre alguma disparidade de "critérios interpretativos"...
    Os efeitos que provoca nos visados (agentes) devem-nos constranger, em acções presentes e futuras, certamente vivendo em sobressalto com receio que algo lhes possa ocorrer até com familiares próximos, ou danos em veículos, certamente não deve haver nenhum curso, para saber lidar com estas situações ou há?
    Não seria a mesma expressão idónea a provocar medo e receio bem como inviabilizar futuras acções ?
    Surge-me ainda outra duvida que será, não revelará esta acção uma disposição de fazer mal?
    Terá este que partir efectivamente as trombas ?? de modo geral, aqui o que o cidadão visará será conter o desempenho de funções do policia, constrangendo-o, isto não será admissível nem pode ser menorizado na punição, nem o desvalor da conduta.
    É a função do policia em causa a ser lesado e não a pessoa que veste o uniforme, o que ele representa, para a sociedade, mas quem aplica lei é quem veste o uniforme. Nestes casos são ambos...
    os meus melhores cumprimentos
    RR

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